Família Finger: Especialistas em transformar terras de camponeses em fortuna pessoal (Parte 1)

Uma série de reportagens produzidas pelo Comitê de Apoio ao AND de São Luis trata do histórico de grilagem de terras na região do Rio Gurupi, no Estado do Maranhão

Em 2008 inicia-se, na região do Rio Gurupi, um emblemático caso de grilagem de terras com a chegada do latifundiário Nestor Osvaldo Finger na região, reivindicando proprietário de uma parte da área. Utilizando-se de conhecidas manobras jurídicas em casos de grilagem, Finger forjou uma história cheia de furos para alegar ser dono de 52.000 hectares de terras camponesas. 

O Comitê de Apoio ao AND teve acesso ao processo onde consta que a Carta de Sesmaria apresentada pelo grileiro de terras Finger de 52.000 hectares de terras é impossível, pois, de acordo com o ITERMA, na Carta Régia de 1695, fica estabelecido que a doação de terras deve obedecer um teto de cinco léguas, correspondentes a 9.000,000 hectares. Além de que a fazenda de nome Santa Inês que o ladrão de terras alega ser sua não foi validada nos termos da Lei de Terras de 1850, portanto, elas se tornaram terras devolutas.

Com tal  fracasso ao provar ser dono das terras, Nestor Finger, mais uma vez de forma  fraudulenta, conseguiu uma titulação de 12.000 hectares emitida pelo Cartório do Ofício Único de Maracaçumé/MA. Mesmo com a porção de área menor, a região reivindicada servia de moradia e sustento para pelo menos sete comunidades: Iricuri, Murujá, Pimentinha, Manaus da Beira, Nova Vida, Vilela (Gleba Campina) e Glória.

Embora portasse papéis que indicasse ser dono das terras, ninguém sabia onde seria a chamada “Fazenda Santa Inês”-  supostamente surgida de uma sesmaria no ano de 1814 – ou de seu desmembramento “Fazenda Santa Érica” – supostamente surgida no início dos anos 2000 – as quais ele dizia ter comprado, pelo contrário, essas fazendas existiam apenas em cartório. 

INCRA e ITERMA: silenciosa atuação em favor da grilagem

Para tentar provar legitimidade, ambas as partes começaram a juntar documentos que pudessem comprovar a legitimidade de suas alegações. O senhor Osvaldo Finger, a existência das fazendas por meio de documentos cheios de inconsistências, e os camponeses, a falsidade da história. E, durante o processo, órgãos de administração pública apareceram para mediar o impasse. Instituições essas, que dariam a decisão final sobre o caso.

O INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), responsável por  assegurar a oportunidade de acesso à propriedade de terra, acompanhou de perto as investigações que buscavam comprovar a fraude das documentações de Nestor, entretanto, passou a atuar de formas bastante distintas em dois períodos. 

Em primeiro momento, quando, pela força do movimento camponês e a ocorrência dos graves conflitos em Corumbiara/RO, em 1995 e Eldorado dos Carajás/PA, em 1996, que tornaram a aguda contradição latifúndio x campesinato existente no Brasil no cenário internacional. No ano de 1997, o INCRA foi levado a fazer, junto com a Agência para a Agricultura e Alimentação da Organização das Nações Unidas (FAO/ONU), um levantamento acerca da grilagem no Brasil. Nesse estudo nacional, as matrículas imobiliárias que seriam requentadas por Nestor Osvaldo Finger eram apresentadas como um dos 100 maiores casos de grilagem de terras do Brasil. 

Em 2001 o INCRA chegou a encaminhar para a Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão (CGJ/MA) um pedido para o cancelamento de todas as matrículas que tivessem essa mesma origem, as quais, reunidas, totalizavam os inacreditáveis 250.000 hectares de terras. O resultado das ações do INCRA não são conhecidos, pois que o próprio INCRA passou anos afirmando que esses processos não existiam e a  CGJ/MA afirma não saber o resultado de tal processo, pois à época os autos não teriam sido digitalizados. Sim, os órgãos dizem que toda essa seríssima situação se descaminhou e que não há nada mais nada a fazer.

Num segundo momento, entretanto, por volta de 2011, inicia-se uma segunda fase da atuação do INCRA. Nessa época, o Superintendente Interino do INCRA do Maranhão era Luiz Alfredo Soares da Fonseca. Atendendo requerimento de Nestor Osvaldo Finger, ele decide por negar a existência de qualquer obstáculos para que os registros das Fazendas Santa Erica I, II e III, como pertencentes ao Gaúcho, não fossem reintegradas ao Sistema Nacional de Cadastros Rurais do INCRA, considerando-as legítimas, mesmo após reconhecer as inconsistências apresentadas anteriormente.

Entretanto, por ironia do destino, em 2012, o mesmo agente, que antes era superintendente do INCRA, Luiz Alfredo Soares da Fonseca, passou o cargo de presidente do ITERMA (Instituto De Colonização E Terras Do Maranhão), o qual possui função semelhante, atendendo a parecer técnico-jurídico deste último órgão, feito em 2011, assina uma decisão em que afirma que os mesmos documentos que ele havia liberado pelo INCRA, possuíam inconsistências insanáveis e as matrículas das Fazendas Santa Érica deveriam ser canceladas.

Essa decisão foi dada no Processo ITERMA 2055/2010, que trata do processo de regularização fundiária da Gleba Campina, dos moradores do Povoado Vilela, de Junco do Maranhão, uma das comunidades atingidas pelo conflito com Nestor Osvaldo Finger.

Ocorre que, em janeiro de 2013, após cinco anos de ataques do grileiro contra a comunidade camponesa, os posseiros do Povoado Vilela recorrem ao Sindicato de Trabalhadores Rurais de Junco do Maranhão e à Federação dos Trabalhadores em Agricultura Familiar do Maranhão (FETAEMA), buscando proteção jurídica através dos órgão do Estado.

Nesse processo judicial, os camponeses apresentaram o parecer técnico e a decisão do ITERMA, assinada pelo próprio presidente do órgão, Sr. Luiz Alfredo Soares da Fonseca. Eis que, intimado a manifestar-se no processo judicial, no início do ano de 2014, o ITERMA, através do Chefe de Gabinete Rui Alcides dos Santos, afirma que os documentos apresentados pelos camponeses eram falsos! Seria cômico se não fosse trágico acreditar que camponeses de uma comunidade da Amazônia maranhense foram acusados de terem falsificado levantamentos topográficos, pareceres jurídicos e decisões do ITERMA, com carimbos, timbres e toda pompa dos documentos do Estado. 

Mas a trama havia sido montada, durante quase 10 anos esse processo foi dado como desaparecido no ITERMA e, enquanto isso, os advogados dos grileiros chamavam os camponeses no processo judicial de “criminosos, invasores, mentirosos e falsificadores”. Somente em 2022, após dois anos de busca, iniciada por um pedido do Promotor de Justiça Haroldo Brito Paiva, esse processo foi encontrado, porém, todas as páginas alvo da discussão no processo judicial, tinham sido arrancadas do resto do processo, sem que houvesse justificativa para o ocorrido.

A atuação do ITERMA passou a ser tão absurdamente favorável àqueles que eles sabiam serem grileiros (os próprios Luiz Alfredo Soares da Fonseca e Rui Alcides dos Santos participaram das investigações que identificaram o caso como sendo uma grilagem entre 1997 e 2001) que, no final 2014, sem investigação prévia, o chefe de gabinete do ITERMA, Rui Alcides dos Santos, acusou os camponeses do povoado Vilela de serem uma espécie de “organização criminosa” que havia invadido as terras de Nestor Osvaldo Finger e pede, em nome do instituto que, pela lei, deveria preservar o acesso às terras públicas do Estado do Maranhão aos camponeses, que a força policial seja usada para despejarem os posseiros da Gleba Campina para satisfazer os interesses de Nestor Osvaldo Finger.

O pedido do ITERMA foi atendido em 2015 pelo Juiz da Comarca de Maracaçumé/MA Rômulo Lago e Cruz, que indefere pedido liminar de manutenção de posse dos camponeses e concede uma liminar de reintegração de posse, com uso de força policial, em favor de Nestor Osvaldo Finger, mesmo que este nem mesmo tenha apresentado sua defesa de forma tempestiva. ITERMA e Judiciário maranhense andavam juntos na proteção jurídica do latifúndio que, em via de regra no Brasil, surge da grilagem das terras na fronteira agrícola.

Essa decisão, como era de se esperar, intensificou a onda de terror que já estava acontecendo no Vilela com os ataques ilegais de jagunços e policiais militares a mando do grileiro.

Morosidade da justiça favorece a violência no campo 

Em setembro de 2016, uma audiência preliminar aconteceu com a presença de Nestor Osvaldo Finger e seu advogado, mas sem a presença dos camponeses e sua defesa. Nessa reunião, importante decisão foi tomada de forma unilateral: retirada de pessoas e coisas da região. O juiz Rômulo Lago e Cruz afirma em sua decisão que ele nem abordaria o caso como sendo reintegração de posse, que a polícia deveria apenas retirar as pessoas e coisas presentes na Gleba Campina.

Ou seja, nessa nova decisão, ainda mais grave que a anterior o juiz Rômulo Lago e Cruz assumindo toda a narrativa do grileiro de que os camponeses eram ladrões de madeira que, portanto, toda estrutura que ali tivessem deveria ser destruída com uso de força policial. A ausência do advogado de defesa e dos camponeses foi tida como um “erro de comunicação”, mesmo assim, o juiz alegou não haver motivos para anulação da audiência e suas decisões, o que foi posteriormente confirmado pelo Tribunal de Justiça do Maranhão! 

O Promotor de Justiça de Maracaçumé André Charles Alcântara Martins de Oliveira, que acompanhava o processo, ficou completamente silente ante a esses trágicos e estupefacientes acontecimentos. Pior ainda, havia no Maranhão, desde 2013, a Promotoria Especializada em Conflitos Agrários, que só iria iniciar sua atuação no processo judicial em 2019, quando nas férias do promotor oficial, o processo é encaminhado à promotoria especializada. É óbvio, contudo, que depois de mais de 10 anos de conflito e de 07 anos de processo judicial conduzido em favor do grileiro, as perdas da comunidade camponesa eram inestimáveis.

Após dez anos de trâmite processual, em março de 2023, o caso foi encaminhado para a Vara Agrária do Maranhão, vara da Capital especializada em conflitos agrários coletivos, reconhecendo que o processo não teve instrução, pois, o óbvio foi reconhecido, a constatação da ilegalidade da ausência da defesa dos posseiros do Povoado Vilela durante essa década inteira.

Tal decisão se deu quando a comunidade Vilela havia se unido com as demais comunidades que sofriam com a grilagem de Nestor Osvaldo Finger e também de outros casos de grilagem, na região do vale do Rio Gurupi, na divisa entre o Maranhão e o Pará, haviam conformado uma organização para promover a sua defesa política, a União das Comunidades em Luta (UCL).

Enquanto o processo se desenrolava na justiça, a presença dos Finger na região estimulou a pistolagem e outros tipos de crime como forma de intimidar os camponeses. 

Vários boletins de ocorrência foram realizados pelos moradores da Gleba Campina, desde ameaças feitas por Osvaldo Finger em pessoa, até destruição de propriedade. Em 2013, o morador Edivan Pereira de Lima, um dos ameaçados pelo grileiro, denunciou que Nestor foi até o seu barraco com seus funcionários, dizendo que aquelas terras não lhe pertenciam e depois ateou fogo em sua casa.

Este é um dos relatos que se soma aos outros de testemunhas realizadas durante a audiência de justificação no mesmo ano. Em 2020, mais crimes foram registrados na área e divulgados na imprensa. No dia 05 de dezembro, três brutais assassinatos enfrentados pelos posseiros da Gleba Campina foram noticiados pela “Agência Tambor”. Em agosto de 2021, o G1 noticiou a queima de 9 toneladas de arroz produzidos por camponeses pobres da mesma região, além da destruição de barracos e marcas de tiros durante o ataque. O arroz era para a subsistência dessas pessoas, que apesar de todas as ameaças sofridas, insistiam em produzir seu sustento nessas terras. 

Ambos os crimes, de acordo com os relatos, apontam para a atuação de Nestor  Osvaldo Finger. E, apesar das denúncias expressas em audiência ou dos inúmeros boletins de ocorrência, não houve movimentação da justiça para apurar os delitos narrados. Dessa forma, tal omissão fez com que a escalada de violência por parte do latifundiário só aumentasse, uma vez que era notória uma silenciosa permissão para continuar e avançar nos seus crimes, de modo que, do conflito, resultaram a morte de pelo menos 5 camponeses do Povoado Vilela que trabalhavam nas terras da Gleba Campina.

A união fez a força

Como descrito, no início de 2023 os camponeses comemoraram o fato do processo ter sido enviado à Vara Agrária. Entretanto, no dia 28 de novembro de 2023, o Juiz Subsitituto Cristiano Simas Sousa, sentenciou o processo em favor dos grileiros sem que nem mesmo o Ministério Público tivesse tido a oportunidade de apresentar as suas alegações finais no processo judicial. A decisão do juiz, por coincidência, se deu um mês após a Família Finger ter iniciado seus ataques às comunidades no vale do Rio Gurupi.

No dia seguinte à sentença, a comunidade Vilela e as outras na região bloquearam a rodovia MA-206, na altura do próprio Povoado Vilela. Logo no início do protesto um pistoleiro atacou a tiros os manifestantes, atingindo um dos posseiros na mão e no ombro. Com a falha na arma do pistoleiro, os camponeses conseguiram capturá-lo e descobriram que o atirador era um policial militar, que foi amarrado e entregue para ser preso pelos seus atos.

É verdade que a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão se recusou durante meses a investigar a conduta do tal policial, divulgando desinformação a nível nacional de que um policial havia sido atacado a passar por um protesto, mas o na primeira quinzena de junho, após muita pressão dos apoiadores da luta pela terra no Maranhão iniciou-se um inquérito policial para investigar essa conduta e outras de policiais militares contra os posseiros do Povoado Vilela.

Outra vitória foi que no mesmo dia 29 de novembro o juiz Cristiano Simas Sousa, diante da repercussão da manifestação na MA-206, suspendeu a própria sentença e voltaria a fazê-lo no dia 12 de dezembro de 2023, quando a Comissão de Soluções Fundiárias do Maranhão (CSF/MA) interviu no processo indicando que, diante das notícias de violência contra a comunidade o cumprimento da sentença era temerário e não deveria ter ocorrido sem que houvesse tido uma visita técnica ao local em conflito.

Em 17 de janeiro de 2024, o Juiz João Paulo de Sousa Oliveira, atendeu a pedido da Promotoria Especializada em Conflitos Agrários do Maranhão (aquela que tentaram impedir que atuasse no processo da Gleba Campina) e liminarmente decidiu pelo bloqueio de três dos cinco títulos pertencentes a Nestor Osvaldo Finger. O pedido é pelo cancelamento definitivo das matrículas fruto da grilagem, para, de uma vez por todas, encerrar os conflitos com elas surgidos.

No dia 07 de março, após um novo acirramento do conflito entre posseiros e pistoleiros entre janeiro e fevereiro, houve operações policiais contra os camponeses e grileiros. No covil dos pistoleiros, onde dizem ser a sede da Fazenda Santa Érica foram presos três pistoleiros e apreendidas vinte armas, milhares de munições, dezenas de coletes balísticos, inclusive de guardas municipais da região, mais outros equipamentos militares.

Em 10 de abril de 2024 a Comissão de Soluções Fundiárias do Maranhão visitou a Gleba Campina e, no dia 24 de abril de 2024 proferiu um relatório em que afirma que as terras pertencem aos camponeses do Povoado Vilela.

Ou seja, depois quase duas décadas de ataques e de dez anos de um processo judicial que caminhava quase sempre em benefício de reconhecidos grileiros, o Judiciário só passou a fazer o mínimo de justiça quando o povo se uniu e se levantou em luta através da UCL – União das Comunidades em Luta, de modo que um caso de conflito agrário que caminhava para ser mais um dos milhões de casos de camponeses expulsos de suas terras está se tornando em um exemplo de vitória dos posseiros da Amazônia na manutenção de suas terras.



Fonte: A Nova Democrácia