Afinal, estamos falando de aproximadamente 23,9 milhões de bicicletas nos Países Baixos, conforme um levantamento do Statista, sendo que a nação possui atualmente 17,7 milhões de habitantes, conforme o Censo mais recente. Ou seja, há uma média de 1,4 bicicletas por pessoa no país. O número cresceu muito nos últimos tempos, entre 2005 e 2022, a quantidade de bikes aumentou cerca de um terço.
Existe mais de 35 mil quilômetros de ciclovias, e um conjunto de leis e normas muito bem estruturado no país. Não é à toa que um adulto médio pedala cerca de mil quilômetros por ano, e os adolescentes do país pedalam duas vezes mais. Os jovens profissionais usam a bike para cerca de 75% de suas viagens, enquanto um quarto dos idosos pedala todos os dias. Portanto, andar de bicicleta não é apenas um estilo de vida, é algo cultural.
Mas por que as pessoas andam tanto de bicicleta nos Países Baixos?
Sumindo com as bicicletas
Um levantamento de 2022 da CBS indicou que os Países Baixos foram responsáveis por 169 milhões de toneladas de emissão dióxido de carbono totais. Vale ressaltar que, em 2019, uma pesquisa do Institute for Road Safety Research mostrou que havia 8,3 milhões de carros registrados em nome de pessoas físicas no país. Em contraste, a China, com seus 360 milhões de veículos circulando por suas ruas, emitiu cerca de 7,4 milhões de toneladas de monóxido de carbono só nesse setor. O país, por sua vez, liberou 11,4 bilhões de toneladas métricas de emissões de dióxido de carbono.
Foi necessária uma autoanálise grande do país europeu para que ele voltasse a ser a utopia para os ciclistas que era durante as décadas de 1920 e 1930, quando havia cerca de 2,7 milhões de bicicletas circulando pelas ruas, em comparação com os 68 mil automóveis. Afinal, o meio de transporte era muito prático e, sobretudo, acessível para a maioria dos cidadãos, que precisavam percorrer distâncias não longas o suficiente para precisar de um carro.
No entanto, durante os cinco anos que a Alemanha nazista ocupou os Países Baixos durante a Segunda Guerra Mundial, em 1940, a cultura ao redor do ciclismo foi alterada drasticamente. Os alemães estabeleceram impostos e racionaram os pneus, dificultando a compra de uma bicicleta nova ou o seu conserto. Apesar de ser contestada, algumas estimativas colocam que metade de todas as bikes no país foram roubadas dos seus habitantes.
E isso não foi tudo. A guerra destruiu cerca de 60% de toda a infraestrutura neerlandesa, de túneis a estradas, forçando o país a se reconstruir quase que do zero. Olhando por esse lado, as obras poderiam significar a volta do período próspero das bicicletas, mas não foi bem assim que aconteceu.
O protesto de Simone
Os Países Baixos sofreram do mesmo efeito do pós-guerra que muitos países. A partir de 1945, foi dado início a várias "eras de ouro" pelas economias mundiais, e a era do automóvel foi uma delas. Tudo aconteceu devido ao crescimento econômico que alguns países experimentaram, com um desenvolvimento tecnológico que começou durante a guerra, aliado à necessidade de veículos militares mais avançados e a produção em massa deles para o esforço bélico.
Entre 1945 e 1970, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita dos neerlandeses cresceu 5 vezes, e os automóveis se tornaram um produto bem mais acessível para a população da classe média. Com isso, no começo da década de 1950, já havia cerca de 139 mil carros pelas ruas do país, sendo que esse número escalou rapidamente para 3,4 milhões em pouco menos que vinte anos.
Diante desse crescimento, o governo neerlandês reconstruiu o país pensando em uma infraestrutura que beneficiasse os automóveis e, para isso, se inspirou nos Estados Unidos como modelo de metrópole para poder modernizar Amsterdã, o rosto da nação. O planejador urbano David Jokinen, um americano, foi contratado para descongestionar a cidade. O problema, no entanto, é que ele tinha uma solução controversa para isso: demolir os bairros operários e até concretar alguns canais para transformá-los em estradas e rodovias imensas.
Toda essa motorização e modernização veio com um custo alto, a começar pelas mortes. Em 1971, foi registrado que mais de 3 mil pessoas foram mortas atropeladas por carros, das quais 500 delas eram crianças. O caso que mais recebeu destaque foi o de Simone Langenhoff, uma menina de 6 anos, filha do jornalista Vic Langenhoff, atropelada e morta por um carro a caminho da escola.
Em resposta, seu pai escreveu um artigo de primeira página intitulado "Para de assassinar as crianças", expondo todos os números trágicos causado pela motorização vertiginosa do país. O artigo gerou indignação e revolta na população. Maartje van Puten, que mais tarde se tornou eurodeputada, encabeçou o movimento anti-carros que surgiu pelos Países Baixos, além dos protestos. Ela se tornou a força motriz para a promoção de mudanças na política de transportes e no incentivo da bicicleta como forma de deslocamento cotidiano.
As mudanças começaram aos poucos, além de campanhas de incentivo, foram estabelecidos domingos obrigatórios sem carros. Enquanto isso, van Puten trabalhava ativamente para uma melhoria no planejamento urbano e nas leis de promoção do uso da bicicleta.
A década da transformação
Em 1972, uma pedra a mais foi colocada no cadafalso da motorização quando o governo neerlandês divulgou um relatório mostrando que custaria bilhões para continuar construindo estradas e rodovias. A mídia lançou aos quatro cantos o quanto isso custaria para os bolsos dos cidadãos, que se perturbaram ainda mais com a ideia de continuar usando carros. Os políticos da época também concordaram que esse tipo de gasto era inviável e que o país precisava buscar alternativas o mais rápido o possível.
No ano seguinte, tudo parecia conspirar ainda mais a favor do uso despudorado das bicicletas como meio de transporte principal no país. Os preços do gás dispararam devido à primeira crise mundial do petróleo, quando o preço do produto subiu 300%. O então primeiro-ministro Joop den Uyl, do Partido Trabalhista, foi em rede nacional fazer um apelo à população para que usasse menos energia e mudasse seu estilo de vida. Ele também anunciou que mais domingos sem carros em outros dias da semana aconteceriam. Era o início de uma nova era para os Países Baixos.
Na década de 1980, algumas cidades neerlandesas apostaram na reestruturação de sua paisagem urbana para priorizar as ciclovias. Foram gastos cerca de US$ 12 milhões construindo uma rede de bicicletas que abrangesse toda a cidade. Com isso, o uso do meio de transporte a duas rodas aumentou 6%, e a condução caiu 3%. Ao longo de 10 anos, o governo construiu cerca de 7 mil quilômetros de ciclovias, aumentando em 70% o número delas pelo país.
A utopia
E isso não foi o suficiente para desencorajar o uso dos automóveis. As zonas livres de carros cresceram em várias cidades, permitindo que apenas caminhões de entrega e veículos de emergência circulem em algumas regiões.
Cidades como Haia e Amsterdã, as mais turísticas, encareceram o estacionamento e estabeleceram uma estratégia de planejamento urbano chamada "acalmia de tráfego" para reduzir a velocidade dos carros. Basicamente, a ideia consiste em estreitar as estradas, reduzir os limites de velocidade com base em multas imensas e adicionar muitas lombadas. Tudo isso para desfazer a ideia de que um carro chegaria mais rápido em determinados lugares. O planejamento foi pensado para dificultar viagens curtas, não longas.
No final das contas, essa pedalada toda não só resolveu os problemas logísticos dos Países Baixos como transformou a saúde das pessoas. Enquanto as taxas de obesidade crescem por toda a Europa, o país é o único que se mantêm abaixo da média. No livro Curbing Traffic, os autores Melissa e Chris Bruntlett fizeram um levantamento que indica que 125 mil pessoas seriam salvas de problemas de saúde crônicos associados ao sedentarismo nos EUA se tivessem o mesmo índice de adesão à bicicleta.
Em um mundo ideal, se todos os países fossem como os neerlandeses, as emissões globais de carbono cairiam em quase 700 milhões de toneladas por ano. Seria como um sonho, realmente.