A Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu ex-ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, na investigação que apura suspeita de fraude na carteira de vacinação contra a covid-19 do ex-chefe do Executivo federal. A PF imputa a Bolsonaro e Cid os crimes de associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema de informação.
Trata-se do primeiro indiciamento formal do ex-presidente em inquérito em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF). A corporação já havia apontado indício de crime no caso do vazamento de inquérito sigiloso sobre ataque hacker ao sistema interno do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na ocasião, porém, a PF deixou de indiciar Bolsonaro em razão de seu foro por prerrogativa de função.
A PF concluiu no relatório que o ex-presidente "agiu com consciência e vontade" para a fraude em sua carteira de vacinação, determinando que o ex-ajudante de ordens "intermediasse a inserção de dados falsos" no sistema do Ministério da Saúde em seu benefício e de sua filha Laura. A investigação também correlaciona o fato à investigação que o colocou Bolsonaro no centro de uma suposta tentativa de golpe de Estado.
Além do ex-presidente e do ex-ajudante de ordens, foram indiciadas outras 15 pessoas, entre elas o deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ), o coronel Marcelo Costa Câmara e o ex-major do Exército Ailton Gonçalves Barros. Gabriela Santiago Ribeiro Cid, mulher de Mauro Cid, também foi indiciada.
A fase ostensiva do inquérito, batizada Operação Venire, foi a que, em maio do ano passado, prendeu Cid, cuja delação abasteceu as apurações que cercam o ex-presidente. A Venire é um dos braços do inquérito das milícias digitais, no âmbito da qual a colaboração premiada do ex-ajudante de ordens foi homologada.
O caso segue agora para o Ministério Público Federal, a quem cabe analisar se oferece denúncia (acusação formal) à Justiça para abertura de ação penal. O parecer deve ser dado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deu 15 dias para que a Procuradoria-Geral da República se manifeste sobre o relatório da PF.
Nas redes sociais, o advogado Fábio Wajngarten, que representa o ex-presidente, disse que o indiciamento é um ‘absurdo‘.
Palácio
Segundo os investigadores, Cid imprimiu a carteira de vacinação falsa do ex-presidente dentro do Palácio da Alvorada. O delator narrou que "recebeu a ordem" de Bolsonaro para fazer as inserções de dados falsos e depois entregou nas mãos do ex-chefe do Executivo o documento falsificado.
"Resta evidenciado que Mauro Cesar Cid, no exercício das atividades de chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República, por determinação de seu superior hierárquico, solicitou a inserção dos dados falsos de vacinação contra a covid-19 em benefício do ex-presidente e de sua filha Laura Firmo Bolsonaro", escreveu o delegado Fábio Alvarez Shor.
O delegado usou relatório de 231 páginas para rebater uma alegação do ex-presidente: a de que Cid teria praticado a fraude sem seu conhecimento. Segundo a PF, não há qualquer elemento que indique que o ex-ajudante de ordens, junto de outros investigados, praticaram os atos "à revelia do então presidente".
"Ao contrário, conforme demonstrado, todas as pessoas beneficiárias das inserções falsas realizada pelo grupo criminoso tinham não apenas plena ciência, como solicitaram/determinaram as inserções falsas nos sistemas do Ministério da Saúde", frisou Fábio Alvarez Shor. Segundo o delegado, o ex-presidente e outros investigados pretendiam obter "vantagens indevidas relacionadas a burla de regras sanitárias estabelecidas durante o período de pandemia". Em trechos do documento, a PF lembra a conduta do ex-presidente, contrária à vacinação, em especial de crianças e adolescentes.
Durante as diligências da Operação Venire, a PF identificou o endereço IP (espécie de digital de um aparelho eletrônico) usado para acessar o aplicativo ConecteSUS de Bolsonaro, concluindo que o acesso à conta foi realizado de um computador no Palácio do Alvorada. Para tanto, os investigadores cruzaram dados de entrada de Mauro Cid na residência presidencial, os registros de acesso do aplicativo do Ministério da Saúde e o horário em que o cartão de vacinação de Bolsonaro emitido.
"Vantagens ilícitas"
Ao indiciar o ex-presidente por associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema de informação, a Polícia Federal correlacionou a fraude na carteira de vacinação do ex-presidente ao inquérito que apura suspeita de trama golpista.
Segundo os investigadores, o ex-presidente e seus aliados podem ter emitido os cartões de vacina falsificados para que, "após a tentativa inicial de golpe de Estado, pudessem ter à disposição os documentos necessários para cumprir eventuais requisitos legais para entrada e permanência no exterior, aguardando a conclusão dos atos relacionados à nova tentativa de golpe de Estado que eclodiu no dia 8 de janeiro de 2023".
A associação entre as duas investigações foi feita quando o delegado argumentou sobre a ligação das fraudes nas carteiras de investigação com as milícias digitais sob apuração no STF. Ele destacou como a inserção de dados falsos de vacinação no sistema do SUS faz parte do eixo do inquérito que apura o "uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens ilícitas".
Segundo Shor, a ‘estrutura criminosa‘ criada em Duque de Caxias (RJ) - base da operacionalização das fraudes nas carteiras de vacinação, conforme a PF - foi usada para que aliados de Bolsonaro "pudessem burlar as regras sanitárias impostas na pandemia e por outro lado, manter coeso o elemento identitário do grupo em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19".
"A recusa em suportar o ônus do posicionamento contrário à vacinação, associada à necessidade de manter hígida perante seus seguidores, a ideologia professada (não tomar vacina contra a covid-19), motivaram a série de condutas criminosas perpetradas", escreveu o delegado.
Delegado aguarda dados do Departamento de Justiça dos EUA
Ao pedir o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e mais 16 pessoas na Operação Verine - apuração sobre suspeita de fraudes na carteira de vacinação do ex-chefe do Executivo federal -, a Polícia Federal fez uma ressalva sobre possíveis novas imputações aos investigados.
O delegado Fábio Alvarez Shor indicou que aguarda informações do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) para identificar se o grupo usou os certificados de vacinação ideologicamente falsos para entrar naquele país. Segundo ele, a eventual confirmação pode configurar novas condutas ilícitas.
A remessa de informações pelos EUA é considerada uma diligência pendente da Operação Venire. Os dados foram requeridos por meio de auxílio jurídico em matéria penal solicitado junto ao DOJ. Shor não mencionou qualquer prazo para o recebimento dos elementos.
A indicação consta do relatório final da investigação sobre a inserção de dados falsos no sistema do Ministério da Saúde em benefício do ex-presidente, de sua filha Laura e de um grupo de aliados de Bolsonaro. A ressalva foi feita pouco antes de a PF detalhar os indiciamentos do caso.
Defesas cobram compartilhamento de investigação
A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pediu ontem ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para ter acesso aos documentos da investigação sobre as fraudes nos cartões de vacinação. Os advogados afirmam que souberam do indiciamento do ex-presidente pela imprensa e que, embora tenham requisitado pessoalmente uma cópia do inquérito, o acesso foi negado.
"Nesse cenário, requer seja esclarecido por quais motivos não foi franqueado acesso à defesa a elementos já divulgados à imprensa", diz o pedido.
O ofício da defesa, assinado pelos advogados Paulo Amador Bueno, Daniel Tesser, Fábio Wajngarten e Saulo Segall, também cobra uma certidão de autenticidade de documentos relacionados ao caso.
Advogado de Mauro Cid, Cezar Bitencourt, à GloboNews, disse que o indiciamento do ex-ajudante de ordens viola seu acordo de delação.
A defesa de Marcelo Costa Câmara e Sérgio Rocha Cordeiro cobrou o compartilhamento dos "elementos de informação reunidos ao longo da investigação", em especial a colaboração premiada de Cid, "na íntegra". Os advogados dos outros citados não se manifestaram ou foram localizados.