Primeira desembargadora negra de carreira a presidir o TRT-MT, Adenir relembra desafios na jornada

Filha de pais analfabetos, sempre teve apego pelo estudo. Não por acaso seu nome é Adenir, homenagem a uma professora que a mãe via passar com livros em mãos

Encarar de frente uma realidade fruto de chagas abertas por desigualdades sociais quando ainda nem sonhava em nascer, tem sido desafio e herança de negros e mulheres há séculos. A magistrada do trabalho há 30 anos e primeira desembargadora negra de carreira a presidir o Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso (TRT-MT), Adenir Alves da Silva Carruesco, também teve de aprender desde cedo como lidar com essas feridas e dar a volta por cima com sua capacidade e competência.

 

Nascida em 1965, no estado do Paraná, Adenir é filha do baiano seu Silvino e da mineira dona Geralda, trabalhadores rurais das lavouras de café que se conheceram ainda jovens no estado. A mãe trabalhou desde os 8 anos de idade nos cafezais, pois era a mais velha de 11 filhos e precisava ajudar a família, uma situação característica da exploração do trabalho infantil. Além disso, também foi babá do filho do dono da fazenda, fazia trabalhos braçais, foi doméstica e viveu situações de precariedade e vulnerabilidade.

 

Em meio a isso tudo via que existia possibilidade de uma vida diferente e sonhava que ao menos sua futura filha teria um destino diferente do seu. Foi através dos incentivos e da criação diferenciada proporcionada pela mãe que Adenir pôde mudar sua história.

 

Filha de pais analfabetos, sempre teve apego pelo estudo. Não por acaso seu nome é Adenir, homenagem a uma professora que a mãe via passar com livros em mãos.

 

Essa valorização do conhecimento a acompanhou por toda a vida. Iniciou na escola com 7 anos na zona rural, com uma mochila feita de saco de açúcar e com tomate de lanche. Já em seu primeiro ano ganhou prêmio de melhor aluna da sala, pois aprendeu a ler e escrever.

 

Ajudava nas tarefas de casa, mas nunca de modo que atrapalhasse os momentos de estudo, algo que dona Geralda sempre prezou muito, e conta que nunca teve calos nas mãos assim como outros de sua geração.

 

“A minha mãe desenvolve isso, porque acreditava que a maior revolta que se podia fazer contra a situação que se vivia, de quebrar o ciclo e sair da vida difícil, era estudando. Então não importava se tinha todas as dificuldades, ela separava um tempo para eu estudar. Ela nunca se incomodou de deixar de comer para me dar um lápis ou borracha, o que ela teve que fazer de trabalho infantil não me fez passar e nunca colocou essa responsabilidade para mim”, afirma.

Luiz Leite

Adenir Carruesco

 

 

Morando em Mato Grosso do Sul, com 8 anos de idade teve o impulso para se dedicar aos esportes, uma forma de se sentir pertencente a sociedade e leva para a vida as lições que a prática esportiva trouxe. “O esporte te ensina de comprometimento e dedicação, a cair, mas levantar, perder e ganhar. O esporte mostra que depende de você e da sua competência. Te dá disciplina, garra e faz lutar com determinação”, ressalta.

 

Nessa época teve também incentivos do professor Napoleão, que percebia o tratamento que a sociedade lhe dava e ensinava sobre seu real valor e a possibilidade de sonhar.

 

“Era muito difícil se identificar como você é e se sentir valorizada e não diminuída, porque existe um padrão que diz o que é belo ou melhor e isso pesa muito para uma criança. Esse professor me ajudou na questão da emancipação estética e dizia que o padrão era criado pela sociedade e me ensinou a me sentir linda e maravilhosa e capaz, então poderia sonhar em ser o que eu quiser”, recorda.

 

Formou-se professora no magistério e realizou o sonho da mãe. Deu aulas e ensinou crianças a ler e escrever, como forma de libertar as pessoas, tendo muito carinho pela profissão.

 

Mas não só de conquistas se faz uma trajetória. Uma de suas primeiras decepções foi quando concorreu a uma vaga em agência bancária para alcançar uma remuneração maior que a de professora. Mesmo gostando muito da profissão, procurava melhor remuneração.

 

Foi reprovada no processo de seleção e soube que a escolhida era a mais “bonita” dentro dos padrões de beleza da época, já que conhecia a concorrente e sabia que as capacidades dela não a superavam. “Na década de 80, os anúncios de jornais de emprego diziam ‘precisa-se de atendente de boa aparência’. então o que significa boa aparência? ou seja, alguem ditou o que é boa aparência e disse que o negro não tem”, afirma.

 

A frustração a motivou em dobro a estudar para trabalhar em um lugar que valorizasse sua competência e capacidade. Foi então que fez o concurso da justiça onde passou e trabalhou durante um ano. Mudou de cidade para fazer faculdade, fez outro concurso e com 19 anos tomou posse. Concorreu com vários advogados e passou mesmo sem faculdade, onde assumiu o comando de um cartório judicial.

 

Foi para Dourados (MS) fazer faculdade de direito e queria ser magistrada. Assim que formou já estudava para novos concursos. Apaixonada pela justiça do trabalho, define a área como uma justiça social, próxima do povo, do cidadão, o direito mais popular que se tem.

 

Teve uma filha enquanto estudava para o concurso em uma época sem cursinho, internet, biblioteca ou mesmo livros comprados, apenas com o que juízes e advogados com quem trabalhava lhe emprestavam.

 

Aprovada na sentença, veio para a prova oral em Mato Grosso, passou no concurso e tomou posse em 1994. Apaixonada pela carreira, de lá para cá são 30 anos trabalhando com o mesmo brilho nos olhos do primeiro dia de trabalho, onde busca fazer a diferença na vida das pessoas.

Luiz Leite

Adenir Carruesco

 

O orgulho da profissão se dá também por quebrar um ciclo das mulheres da família, que não conseguiram terminar nem mesmo o ensino fundamental e trabalharam como doméstica por não ter opção.

 

Presidente do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso (TRT-MT) para o biênio 2024/2025, sente o peso da importância de chegar até aqui. “A mulher quando ocupa posição de poder e cargos de liderança tem a responsabilidade de ser espelho para que outras possam buscar essa possibilidade”, diz.

 

Apesar de relatar nunca ter vivenciado situações de discriminação direta ou injúrias no ambiente de atuação, percebe o racismo estrutural enraizado na sociedade, bem como dentro de qualquer instituiçao no Brasil.

 

“As barreiras não estão nas portas do tribunal, estão antes. Por que tanta gente não chegou a ser aprovada no concurso? Muitos sequer tinham condições de fazer, desde as salas de concurso que eu fazia mal tinha negros, mulheres também poucas. Se para mulher branca já tem barreiras, fazendo o recorte, imagine para a mulher negra”, ressalta.

 

Além do racismo, Adenir pontua que os reflexos do machismo na sociedade fazem com que as mulheres não percebam seu valor, delas e de outras, para incentivar outras e a si mesmas a almejar grandes sonhos e posições, devido a barreira que não é objetiva, mas cultural.

 

“Quando a gente fala de igualdade de gênero, todas tem que ter oportunidade, ninguém pode ceifar nossos sonhos. A gente tem que acreditar e imaginar e ser quem quisermos. Se você quer ser dona de casa, pode ser. Não precisa de modelo para ser feliz, é a libertação da mulher. Você é quem quiser ser e quanto mais cedo aprende isso e tem pessoas que te incentivam e admiram, é muito importante”, reforça.

 

Sobre o que é ser mulher, Adenir diz:

"Ser mulher é ter mais força do que o que se espera da pessoa humana, de uma forma geral, porque você passa por muitos mais desafios. Os desafios que passa por ser mulher não só por conta de barreiras sociais, mas porque a sociedade não deixa de reconhecer que é patriarcal, que tem a cultura machista. E para você vencer tudo isso, você tem que ter uma força que supera tudo isso. [...] Parece-me que ser mulher é ser um pouquinho mais exigida, mas ser mulher também tem todas essas dificuldades e as delícias de ser mulher. É uma bênção, as realizações que a gente pode ter na condição de mulher, de se realizar como pessoa, de ver a vida com uma certa suavidade, a ternura, eu acho que essa temperança toda de ser mulher,  é uma coisa divina", conclui.

 






Fonte: Gazeta Digital