Considerada uma das áreas mais promissoras da atualidade, com os profissionais mais requisitados e bem pagos do mercado mesmo em anos iniciais de atuação, a tecnologia da informação (TI) ainda é um campo considerado “inóspito” para mulheres. A desigualdade salarial, dificuldade na ascensão da carreira e desafios aos conhecimentos na área são rotina daquelas que enfrentam empecilhos para seguir na área.
Diferente de muitos setores onde elas têm conseguido ingressar e fazer carreiras excepcionais, na TI os desafios ainda são evidentes devido a discriminação de gênero, mesmo em um país como o Brasil em que o setor tem expandido e enfrenta escassez pessoal qualificado na área.
“Foi muito difícil entrar na área de TI. Foram muitas vagas negadas, passei quase toda a faculdade sem conseguir ao menos uma oportunidade, e só consegui no último semestre. Sinceramente, pensei muito em desistir devido à falta de oportunidades no setor”, desabafa a programadora Elisandy Yolainny Mio de Camargo, 20.
Apaixonada por tecnologia e computadores desde a infância, Sandy, como gosta de ser chamada, possui ensino superior completo na área de Análise e Desenvolvimento de Sistemas e atua profissionalmente há um ano e meio na área.
Apesar da falta de incentivos para sua decisão, cursou e pagou a faculdade toda sozinha. A profissional relata que os obstáculos ainda são muitos, a começar pela formação, antes mesmo do mercado de trabalho, cujo ambiente é predominantemente masculino.
“Como é um curso majoritariamente frequentado por homens, quando uma mulher tenta ingressar, poucas pessoas incentivam. Além disso, não se fala sobre as diferenças salariais. Infelizmente, a disparidade salarial entre homens e mulheres é grande e posso afirmar isso com base em situações que presenciei”, conta.
Sandy narra que já sofreu desmerecimento de seu conhecimento no primeiro emprego que teve, onde era colocada para fazer funções que não eram da área.
“Quando reclamei, meu chefe disse que não tinha ninguém para fazer os trabalhos administrativos, mesmo em uma equipe de mais 4 pessoas, todos homens. Questionei, pois queria trabalhar na área de TI. Ele respondeu que não tinha nada relacionado para me atribuir e ainda insinuou que eu não sabia o que fazer da vida, dizendo que eu estava confusa”, revela.
Assim como Sandy, Jaqueline Silva Gonzaga, 27, relata que sofreu diversas situações de machismo e desvalorização. Mesmo alcançando rapidamente níveis elevados na carreira, enfrentou críticas e questionamentos sobre suas habilidades, chegando ao ponto de colegas de trabalho desafiarem sua competência perante a gestão.
“Uma situação marcante foi quando, ao receber uma proposta internacional com significativo aumento salarial e promoção, fui desencorajada pelo meu gestor, que subestimou minha capacidade de desempenhar o novo cargo. Isso resultou em um burnout, mas eventualmente tomei a decisão de seguir em frente, reconhecendo meu próprio valor e potencial”, relembra.
Jaqueline atua na área há 4 anos e conta que tanto em empresas pequenas quanto em grandes corporações, existe uma cultura desafiadora que exige que as mulheres provem seu valor de forma "dobrada" no trabalho. “Em todos os times que integrei, fui a única mulher, e mesmo em equipes com mais mulheres em áreas como design e produto, os líderes ainda tendem a ser homens”, narra.
Para a profissional, a principal dificuldade é ascender na carreira, já que há poucas oportunidades em cargos de alta gestão para mulheres. Ela descreve que a presença feminina em cargos de liderança é crucial para a representatividade e promover mudanças nesse cenário.
“Muitas vezes, mulheres qualificadas são preteridas em favor de homens menos experientes, o que resulta em estagnação profissional e frustração”, pontua.
Mais do que uma percepção, uma realidade em dados
Assim como em outras profissões, a área de TI não foge à regra: as mulheres ainda ganham menos e são minoria nos cargos de chefia.
Globalmente, as mulheres jovens superam em número os homens jovens no ensino superior. No entanto, elas são minoria nos cursos de STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática), representando apenas 35%, e nos cursos de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) é ainda menor, com apenas 3%.
No mundo, apenas 2 em cada 10 empregos em ciência, engenharia e tecnologia da informação e comunicação são ocupados por mulheres. Em 2022, nas 20 maiores empresas de tecnologia do mundo, as mulheres representaram 33% da força de trabalho, porém ocupam apenas um quarto das posições de liderança.
Quem relata estes dados é a diretora das secretarias regionais da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), formada em Ciência da Computação e doutora em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da USP, Eunice Pereira dos Santos Nunes.
“Apesar de alguns avanços recentes, ainda persiste uma grande lacuna de gênero na área de tecnologia e inovação. Mulheres e meninas estão sub-representadas tanto em indústrias quanto em instituições acadêmicas no setor tecnológico em geral”, aponta.
A pesquisadora ressalta que a representação das mulheres em carreiras relacionadas à TIC é alarmantemente baixa. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), durante a educação básica, apenas 1% das meninas consideram uma carreira nessa área, em comparação com 8% dos meninos.
“Essa desigualdade também se reflete no ingresso de mulheres nos campos das ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Como exemplo, no ensino superior as mulheres estão concentradas em em cursos de ciências sociais, humanidades e ciências da vida. Elas representam 70% dos estudantes nessas áreas, como educação e saúde e bem-estar e em campos específicos como matemática e estatística têm apenas cerca de 32% de participação feminina, de acordo com o RICYT”, afirma.
A pesquisadora pontua que mulheres que atuam em ciência e tecnologia têm menos probabilidade do que os homens em acessar financiamentos. As startups lideradas por elas receberam apenas 2,3% do capital de risco em 2020, de acordo com a Harvard Business Review. Já na academia, elas também receberam menos financiamento, apesar de serem duas vezes mais produtivas, segundo o Fórum Econômico Mundial.
Conforme a especialista, ao envolver mulheres e outros grupos marginalizados na área de tecnologia, é possível obter soluções mais criativas e promover inovações que atendam às necessidades das mulheres, além de impulsionar a igualdade de gênero.
Por outro lado, excluir as mulheres do mundo digital resultou em uma redução de US$1 trilhão no produto interno bruto de países de baixa e média renda na última década. Se nenhuma ação for tomada, essa perda chegará a US$1,5 trilhão até 2025.
Para isso, é necessário enfrentar obstáculos tanto no campo educacional quanto profissional, como a desigualdade de gênero, falta de modelos femininos na área STEM, ambientes de trabalho hostil, falta de apoio e mentoria, equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, além de estereótipos e preconceitos.
Como mudar essa realidade?
Embora ainda existam diversos desafios, Eunice afirma que é notável um crescente reconhecimento na sociedade e no mundo do trabalho sobre a importância criar ambientes mais inclusivos e equitativos, especialmente, na área de tecnologia.
“É importante ressaltar que nós mulheres não queremos privilégios, mas sim a oportunidade de mostrarmos que somos competentes, também em áreas predominantemente masculinas”, reforça.
Para além disso, ela destaca essencial que haja um compromisso contínuo da sociedade, incluindo governos, empresas, instituições educacionais e organizações da sociedade civil, em reconhecer e abordar os desafios que impedem o pleno envolvimento das mulheres na área de tecnologia e promover políticas públicas que apoiem e incentivem a participação feminina nos cursos de STEM.
A pesquisadora cita alguns exemplos de como a sociedade pode incentivar e dar suporte:
Educar e conscientizar sobre as oportunidades disponíveis na área de tecnologia para mulheres, desde a educação básica, incentivando a confiança em suas habilidades nessa área
Promover programas de mentoria e redes de apoio específicos para mulheres na tecnologia
Fomentar a diversidade e inclusão nas empresas, incluindo oportunidades iguais de desenvolvimento e progressão na carreira
Flexibilizar o trabalho, criando ambientes que permitam às mulheres conciliar suas responsabilidades profissionais com as demandas da vida pessoal e familiar
Promover modelos femininos, a fim de celebrar o sucesso de mulheres na área de tecnologia, apresentando exemplos de liderança para as futuras gerações
Oferecer programas de capacitação e desenvolvimento profissional voltados, especificamente, para mulheres na tecnologia, fornecendo habilidades e conhecimentos necessários para terem sucesso em suas carreiras
Desse modo, a sociedade também será beneficiada com mais diversidade e qualidade na produção e inovação de produtos e serviços.
Promover mudanças e conscientização
Em 2018, ainda no ensino médio, a jovem Rafaela Francisco, hoje com 23 anos, estava decidindo qual área gostaria de seguir. O colégio onde estudava proporcionava palestras sobre carreiras e uma delas foi com um profissional da área de tecnologia.
“Ele mostrou os avanços da tecnologia e as áreas de atuação. Fiquei impressionada e interessada, principalmente pelas possibilidades que a área gerava. Entendi que era uma área do futuro e com grande tendência para os próximos anos", relembra.
Foi então que a jovem começou a pesquisar e conhecer as carreiras na tecnologia. Além disso, o noivo de Rafaela, havia recém entrado na faculdade de ciência da computação na época e contava sobre a rotina, das disciplinas, dificuldades, o que fez a jovem gostar da área.
Inicialmente, quando contou sobre a decisão para familiares e amigos, nem todos entenderam a escolha. Houve resistências iniciais, questionamentos e receios. No entanto, com o passar dos anos, em especial pela popularização da área durante o pós-pandemia, com uma brusca mudança digital, Rafaela conta que eles compreenderam a importância da área e as oportunidades crescentes.
Finalizando a graduação em Ciência da Computação pela UFMT, Rafaela já atua há 3 anos em TI, passando pela área de engenharia de software e análise de dados. Segundo ela, hoje, no Instituto de Computação da UFMT, existem projetos que promovem não só a discussão da temática, mas também ações para entrada de meninas e mulheres no mundo da computação e na liderança em STEM.
Projetos estes que a jovem considera essenciais para a mudança desta realidade. São eles o projeto Meninas Digitais Mato Grosso e o projeto ELLAS, o qual Rafaela desenvolve o website.
O projeto Meninas Digitais Mato Grosso foi criado em 2015 e tem como objetivo a realização de práticas de caráter motivacional e informativo com alunas de Ensino Médio, Ensino Fundamental e Ensino Superior no estado de Mato Grosso visando a equidade de gêneros nas carreiras e cursos da área de Computação e suas tecnologias da região, através do incentivo e promoção da participação feminina.
Já o projeto ELLAS (Equality in Leadership for Latin American STEM) tem como principal meta gerar e usar dados abertos conectados, de países da América Latina, úteis às políticas e iniciativas que visam reduzir a diferença de gênero em Ciência, Tecnologia, Engenharia, Matemática (STEM), em especial para igualdade de gênero na liderança em universidades, indústrias e instituições públicas.
Para Rafaela, as gerações passadas de mulheres na área de tecnologia abriram portas e foram ultrapassando muitos obstáculos ao longo de suas trajetórias para que as atuais gerações pudessem ter grandes referências femininas, e espera que estas continuem abrindo possibilidades para as gerações futuras, mesmo com as dificuldades existentes.
"Acredito que todos os esforços e iniciativas incríveis que promovem o protagonismo feminino na área de tecnologia poderão, um dia, proporcionar um ambiente com equidade de gênero e muitas possibilidades para as mulheres", sinaliza.
Fonte: Gazeta Digital